Lembro-me perfeitamente. Todas as quintas feiras, às três da
tarde, a campainha de casa dos meus avós fazia-se ouvir interruptamente. A
figura franzina de Mlle Claire entrava em passos silenciosos deixando ouvir lá
ao fundo um “Boa Tarrrde!” e dirigia-se à sala de música onde eu a esperava no
banquinho em frente ao piano. Levantava-me para me debruçar numa vénia e voltar
a sentar.
Todas as quintas feiras tinha de ouvir: Attention! C’est le
Si, pas le Fá. E os dedos de Mlle pousavam em cima dos meus. Fechava os olhos e
franzia a testa de modo a não ouvir o estalido daquelas enormes unhas de
gelinho. Os dentes pareciam arrepiar-se como se areia estivessem a trincar.
Certo dia, depois de muito treinar consegui compor uma
música e apresentá-la a Mlle Claire.
E chegou numa
quinta feira, às três da tarde e lá estava eu sentada para fazer a minha
apresentação.
Desta vez, Mlle Claire sentou-se ao meu lado, no banquinho e
comecei: dó, dó, dó, ré, ré, ré, mi. mi. mi .fá, fá, fá, sol, sol sol, lá si,
si, si... Repeti estas notas vinte e sete vezes. Quando acabei, levantei-me.
Fiz uma vénia de agradecimento. Os meus olhos calados, sorridentes e trémulos
de ansiedade procuraram as mãos de Mlle. As mãos não estavam pousadas no colo
e, atrevidamente, ousei erguer mais a cabeça. Qual não foi o meu espanto - havia
conseguido: as unhas de gelinho que tocavam nas minhas mãos levando-as às
teclas do piano estavam a desfazer-se. O decoro de Mlle Claire caíra. Entre um
sorriso e um esgar de medo reparei que Mlle havia roído as unhas qual fora o
desespero daquela minha ária.
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