terça-feira, 18 de agosto de 2015



Coloquei saia e casaco cor púrpura a seguir a uma blusa de seda imaculadamente branca. Olhei-me no espelho dando um toque no cabelo que se desalinhara e retoquei, com  bâton, a linha correta dos lábios que me realçou a minha feminilidade. Dirigi-me ao elevador e entrei no carro a caminho do Sheraton, onde começava o turno da tarde, depois de umas reconfortantes férias.
Roma era uma cidade de encantos e recantos românticos e sentia-me sempre bem em voltar a casa.
O frenesim do telefone (re)começou; os hóspedes não paravam de chegar; as crianças lançavam no ar gargalhadas...
Triiiiiiiiiiim...Triiiiiiiiiiiiiim...
-Estou, sim. Hotel Sheraton, boa tarde!
- Quarto 505. Quando é que trazem a champagne pedida há cinco minutos?
“Quarto 505? Há cinco minutos? Quem será que está tão frenético que não pode esperar?
Verifiquei na plataforma o utente e...meu Deus! A banda de rock... a melhor banda do momento está hospedada na suite 505...”
- Um momento, por favor. Ser-lhe-á enviada imediatamente. Peço desculpa pelo atraso.
- Trimmmmmm...
- Hotel Sheraton, boa tarde! (...)
- 505, novamente. Queríamos uma toalha de banho, uns chinelos de quarto  cor de rosa, e espuma de banho.
- (...?...) Sim. Enviarei imediatamente.
- Hotel Sheraton, boa tarde! (...)
 Uma voz estridente fez-se ouvir do outro lado do telefone.
- Quero uma limousine para nos levar ao centro da cidade, máscara venezianas, casacos de  vison... Sairemos assim que nos entregarem  o pedido.
- Tentarei satisfazer o seu pedido. As máscaras  venezianas, poderão ser substituídas por máscaras romanas?
- Claro que não! Têm de ser  de Veneza.
-Terá de compreender que é deveras um pedido demasiado bizarro..., mas tentarei satisfazê-lo.
Desliguei. Estava irritada com tais exigências. Pedi ao meu colega que me substituísse e tratei de ser eu mesma a recolher todos os “desejos” daquela banda louca.
Bati na porta da suite 505; entreguei um pacote embrulhado em papel de manteiga com um laço feito de cordel.
- O seu pedido. O veículo está estacionado na frente do hotel. Quando quiser é só descer. E não admito reclamações – disse com voz melada a tender para malcriada.
A banda desceu. As máscaras  de papel recortado de revistas e os casacos multicolores adquiridos nos perdidos e achados do hotel fizeram a diferença. Ninguém reparou que estava a sair a melhor banda de rock do momento. O Fiat seiscentos que os esperava arrancou e mais tarde o espetáculo começou.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

-->
Maria Arménia Madail da Silva_2015

- Que aconteceria se eu licitasse?
- Queres saber? Salta e logo verás.
- Que pensas? Crês que não sou capaz? E é já! Aquela peça faz-me lembrar alguém e – imagina só - deixa-me excitado e sem medos.
- O preço é alto! Cuidado!
“- Dois milhões, um; dois milhões, dois; ... dois milhões...três!
Aquela peça fez turbilhões na minha mente: de onde a conheço? As sombras das mulheres que passaram na minha vida desfilaram na escuridão dos meus sentidos.  Uma delas parou um instante na minha frente: silhueta de uma adolescente com um corpo já perfeito; seios a apontar; cabelos lisos e revoltos num vento que não se fazia sentir; silhueta de vestido esvoaçante e transparente oferecendo um sim; silhueta que me deixou entrar e eu entrei: no seu corpo...;
- ...?
- ...
- Então? Estás louco?
...na mão ... na mão...
- A peça em leilão vai para o Dr. Carlos Armand! Parabéns!
-...?  Para mim? Não! O gesto foi irrefletido. Gostaria imenso de a adquirir, mas não. Não tenho esse valor!
“Meu Deus! Deixei-me envolver entre uma hora e outra e deixei o relógio parar.”- pensou em voz alta.
- Sim, é verdade!  - sussurrou uma voz na sua orelha! – Assumo a licitação. A peça será minha.
Parei no rescaldo da convalescença da NOSSA pequena história: o primeiro encontro, o primeiro toque, o primeiro beijo e a caixinha de música de porcelana que caiu  da sua mão e mergulhou silenciosamente no lago e lá ficou esquecida!
Olhei para trás e vi uma senhora de cabelos grisalhos e um olhar cor do céu. Quem será? Quem quis ficar com aquela peça, também? Não. Não pode ser! Ela já morreu...
_ Carlos! Estás bem?
- ...???
-  Carlos!!!
- Viste? Era ela! Era ela! A Susana! A que pagou a minha licitação! Onde se escondeu?
- Não, Carlos! Muito parecida, mas muito mais jovem...

Maria Arménia Madail da Silva 2015
 
Os olhos poisaram naquela esfinge, seminua, que o convidou, languidamente, a penetrá-la.
Era ela! Eu sabia que a encontraria.
O entrar sentido naquela que o fascinava há longos sonhos. A mão frenética e faminta de carícias puxou-o tornando-o em si.
Senti dentro, aquilo que sentira fora, mas de uma maneira tão turbulenta que deixei o meu coração saltar. O toque frio colado no meu corpo foi aquecendo com o ar cálido dos lábios que começaram uma viagem vertiginosa até ao meu ínfimo sentimento de homem em estado de êxtase.
Mãos, pernas, cabelos emaranhados, sexos copulados deleitaram-se horas e horas num, vários orgasmos de cumplicidades perdidas nos tempos.  A metamorfose dera-se. A permanência no irreal parecia real. A avidez de entrelaçar os dedos nos dedos, a boca na boca, a mistura de salivas e o saborear de um e de outro durou eternos amores.
Queria sair. Estava exausto. Sentia-me devorado. O meu corpo desfazia-se em pequenos pontos cintilantes, a minha cabeça deixava-se levar e eu queria sair. Os seios  rígidos da estátua roçavam os meus lábios já secos e sentia-os agora a entrar na minha boca. Mais um aiiiiiii! Mais um orgasmo!
“ O museu encerra dentro de cinco minutos. Agradecemos que comecem a dirigir-se à porta de saída. Obrigada.”
A voz sonora despertou o encanto da visão de Afrodite de Cápua.
Sorri! Dirigi-me à saída do Museu Arqueológico de Nápoles.


Maria Arménia Madail da Silva - 2015
Cheguei já eram cinco da tarde. Tarde  sombria e carregada de um nevoeiro que mal dava para ver o mausoléu. Passos decisivos aproximaram-me de uma laje com uma foto esbatida.
Tinha acontecido há quarenta anos atrás, era um jovem apaixonado por bailado e nesse dia tinha adquirido bilhete para ver a companhia de bailado de Nevesk: O Lago dos Cisnes. Sentara-me na plateia e  deslumbrado assisti ao espetáculo. O encanto daquela linguagem gestual fazia-me sentir leve e transportado para o limbo das minhas recordações: outrora fora um bailarino de sucesso, mas uma doença rara roubara-me esse sonho.  A meu lado ouvi “ Esta é a bailarina que trocou o marido quando soube que ele não podia voltar a dançar?  - Sim. Shiiiiiiu!”
 O quarto ato decorria ao som da música de Tchaikovsky  e Siegfried  envolvia, num prenúncio de morte, o grito de Odette, um amor além da vida. O corpo contorcido em dor deixou-se embrulhar em forma de cisne e  uma corrente lenta de sangue deslizou, lentamente, pelo braço alvo de Odette. Siegfried sentiu o peso daquele corpo frágil e depositou-o no chão. O público extasiado com a veracidade daquela dança -   cisne enlouquecido e em desespero por um amor proibido – aplaudiu de pé e em ovação.
Senti-me reconfortado. Regressei a casa.
Aquela foto lapidada na pedra marmórea  perdia a cor.  Os olhos plúmbeos, baços e lacrimejantes não desapareciam. Teimavam em não desaparecer. Todos os anos. E todos os anos me dirigia lá procurando uma resposta naquele olhar. Porquê?
No dia seguinte os jornais revelavam que a protagonista do Lago dos Cisnes tinha sido alvejada com um tiro silencioso vindo da plateia. Que perda!
E os olhos daquela foto que teimavam em não desaparecer deixaram cair uma gotícula ensanguentada.
Pousei a tulipa negra junto da foto. Dei meia volta e regressei ao carro com um sorriso de escárnio: “Porquê?

Maria Arménia Madail da Silva - 2015

Naquele quarto cheio de uma  penumbra que se fazia permanecer há já dois dias, Cármen respirou os odores entranhados na sua pele. Sentou-se no meio da cama e começou a calçar as meias de vidro, numa languidez sonâmbula. O braço direito dirigiu-se à nuca, cerrou as pálpebras e sentiu, de novo, o perfume almiscarado e a sua mente recuou.
Há anos que sonhava com aquele encontro, seria o encontro da sua vida. Ele tinha anuído no dia em que a encontrou, casualmente, na avenida Oudinout, Já não se viam desde o tempo da faculdade. Ambos tinham seguido o seu caminho.
O encontro que começou por ser formal passou, passados uns minutos, a ser um encontro de loucuras lascivas e beijaram-se sem nada dizerem. Aconteceu. E queriam ir mais longe.  E há dois dias que se haviam fechado naquele quarto de hotel e se tinham amado. Desde a rapidez do tirar das roupas, ao impulso de uma necessidade ávida de se tatearem até ao orgasmo apressado – a primeira vez. Depois foi um descobrir de um e de outro. As bocas minguavam as suas línguas, as mãos procuravam sítios desconhecidos, os corpos molhados entrelaçavam-se como ramos fustigados por tempestades. A respiração era entrecortada por sons de prazer  e o quarto cheio de penumbra era a única testemunha deste encontro.
Calçou um sapato e depois o outro. Sorriu. Olhou o espelho e a sua imagem refletiu um esgar de tristeza. Uma sombra pairou sobre o seu semblante. Desviou o olhar do espelho, vestiu-se e saiu apressadamente daquele lugar. Atabalhoadamente remexeu na carteira e tirou as chaves do carro e acelerou até àquela praia onde se sentia em harmonia.
Deixou-se ficar no carro a olhar no vazio daquele imenso horizonte onde o sol pálido ia descaindo. As lágrimas caíram-lhe.
Ela suspirou . Anos a sonhar com aquele encontro. Encontro que nunca aconteceu.
Amor platónico?