domingo, 20 de abril de 2014


Um sono  alvoroçado com intermitências de salpicos de chuva e melodias. Petra
sentiu o seu corpo sair de si.  A silhueta do dono do casaco e do chapéu ondulava em passo artístico em  direção a uma mulher que se lhe insinuava na penumbra.
O esforço dos músicos – que tocavam há mais de três dias – começava a fraquejar, mas de súbito curvaram-se ante a cena.
A mulher - cuja sombra se refletia na parede do prédio - baloiçava os braços em torno do corpo; as pernas entreabriam-se num gemido faminto e a silhueta entrou a seu pedido. A música despertou e em tons silenciosos foi acompanhando aquela dança na expectativa de saborear o momento de um coito turbulento, exímio.
Os tons silenciosos misturaram-se em tons graves a agudos. A mulher e a silhueta  envolviam as suas formas numa só – encaixavam-se. Os sussurros - cada vez mais altos e comprimidos – esfaqueavam o silêncio da noite. Os corpos, molhados e exaustos pela luxúria da música, separaram-se no momento do clímax: o último grito, a última nota.

(continuação do conto "A estranha vida de Petra)
Petra-Jordan Photos- National Geographic

COISAS QUE APRENDI QUANDO JÁ ERA TARDE DEMAIS
Quando foste embora não suportei.
O meu rosto ficou marcado com sulcos da passagem  de tantas lágrimas. Não suportei.
Não suportei porque achei que era tarde demais para voltar a ter-te nos meus braços. As noites e os dias passavam em horas infindáveis e o meu sufoco não se deixava soltar. Não suportei, não suportava, não suporto: é tarde demais para voltar amar. Não te Julgavas uma mulher fria, controladora de  todas as emoções pois quando me aproximava o teu corpo de aromas sensuais deixavam-me louco e tu envolvias-te em mim, como uma criança que precisa de colo. Não suportei quando, naquele dia,  entrei no teu consultório e me  apercebi que tudo aquilo que me dizias no segredo dos lençóis estava a ser repetido num sofá, num embrulhar de corpos, em ais de êxtase. A minha timidez impediu-me de avançar e dizer-te aquilo que senti, naquele momento.
Já passaram três anos. Hoje, escrevo  para te relembrar os nossos dias e noites de mentira. Quero dizer-te que aprendi a não te saborear, a não respirar o teu cheiro, a não ter fome e sede de ti. Aprendi a viver com outros aromas, outros corpos, outros ais, outros lençóis.

De tempos a tempos – na cama – um braço estende-se na procura de um corpo há muito conhecido. A procura cai no vazio. O braço regressa ao encontro do outro e entrelaçam-se comprimindo um peito ofegante e um suspiro de certeza.
A madrugada aparece acompanhada do marido que entra na cama devagar. E procura, ele, também. A procura cai no vazio. O vazio não consegue perdoar.
Arménia Madail, in Desafios